Nova Lei de Licitações. Lei 14.133/21. Art. 58, caput. Exigência da “garantia de proposta” ou “garantia de participação”. Risco de violação aos princípios da Administração Pública.
Conforme disposto no art. 58 da Nova Lei de Licitações, agora é possível exigir dos licitantes a apresentação de “garantia de proposta” (ou “garantia de participação”), inclusive nas licitações instauradas sob a modalidade “pregão”, algo que era expressamente proibido no antigo regulamento, conforme o disposto no art. 5º, I, da revogada Lei 10.520/02.
O objetivo imediato para esta exigência – de apresentação da garantia de participação – é assegurar à Administração Pública a execução (cobrança) do valor dado em garantia no caso de aplicação de multa ao licitante vencedor que, após convocação, se recuse a assinar o contrato ou deixe de apresentar os documentos necessários à sua formalização. Há quem afirme, ainda, que esta exigência poderia representar um “filtro” para expurgar licitantes aventureiros das licitações. Toda cautela é necessária neste momento, pois a aplicação excessivamente rigorosa da lei pode facilmente conduzir, também, a situações de injustiça excessiva (summum ius summa injuria).
Ocorre que, sob tal pretexto, a exigência da garantia de proposta não deveria ensejar violação ao princípio do sigilo do licitante. Ademais, o direito de a Administração assegurar o pagamento de uma eventual multa não poderia, na mão oposta, trazer prejuízo à competitividade ou à transparência da licitação. Vale dizer que o exercício de um direito – por parte da Administração – não deveria causar mais prejuízo do que vantagem ao interesse público.
A inovação trazida pela Lei 14.133/21 permite ao gestor público exigir do licitante, mesmo nos pregões, a apresentação da garantia de participação. O problema do texto legal é o instante no qual esta garantia será apresentada. Vejamos o texto legal: Art. 58. Poderá ser exigida, no momento da apresentação da proposta, a comprovação do recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, como requisito de pré-habilitação. (g.n.)
Ocorre que, para a comprovação do recolhimento da garantia, o licitante seria, imediatamente, identificado. E é aqui que reside o grave problema.
Vale dizer que a aplicação literal da norma permitirá, em tese, que o licitante se “identifique” previamente ao início da fase de disputa da licitação, o que configuraria um golpe mortal à competitividade, sobretudo nas licitações eletrônicas, nas quais os licitantes não são identificados até que a fase de lances seja encerrada, justamente para estimular a disputa e, ainda, evitar conluios ou estratégias anticompetitivas.
Assim, se a comprovação do recolhimento da garantia de participação (a exemplo de dinheiro, carta de fiança ou seguro-garantia) for apresentada na fase de proposta (ou antes dela) haverá um fundado risco de identificação do licitante, a representar prejuízo à legitimidade da licitação.
Sendo assim e para evitar a identificação prévia dos licitantes, a garantia de participação poderia, em tese, ser exigida juntamente com os documentos de habilitação, momento, inclusive, em que todos os licitantes já estarão identificados, não representando, por sua vez, risco à violação do sigilo do licitante. Este, inclusive, é o posicionamento de vários julgados do TCU quando da análise do tema, ainda na vigência da Lei 8.666/93 (Acórdão
6193/2015-Pr.Câm.; Acórdão 2552/2017-P; Acórdão 2516/2017-Pr.Câm.; Acórdão 802/2016- P; Acórdão 2074/2012-P)
O Relatório da Equipe de Auditoria que se pronunciou no Acórdão TCU nº 2156/2017- Pr.Câm., a respeito da “garantia de proposta”, fez uma importante observação naqueles autos, mas que poderia, oportunamente, ser aproveitada na análise do art. 58 da Nova Lei:
“(…) A uma porque se constitui procedimento que pode ser nocivo à competitividade do certame, porquanto permite aos licitantes e aos agentes públicos envolvidos na licitação disporem dos nomes dos demais concorrentes, antes do início da licitação, dando margem a fraudes e conluios. A duas porque a caução integra a documentação relativa à fase de habilitação cujos documentos devem ser apresentados em envelope lacrado apenas na data marcada para abertura da sessão”.
Outro ponto de observação habita no seguinte fato: se a garantia de proposta servirá para assegurar o pagamento de multa aplicada somente após a homologação do processo, nenhum prejuízo haverá em determinar sua apresentação juntamente com os documentos de habilitação.
Mas aí teremos um outro problema.
Considerando que a “garantia de proposta” será exigida na fase de habilitação; e considerando que os documentos de habilitação somente serão exigidos do licitante vencedor; haveria a hipótese de exigir-se a garantia de apenas um licitante (justamente o vencedor), permitindo aos demais participantes que não o fizessem, justamente porque deles não seria exigida a apresentação dos documentos de habilitação. Haveria, por certo,
uma violação ao princípio da isonomia, uma vez que a Administração teria aferido o cumprimento da “garantia de participação” apenas do primeiro classificado, enquanto a exigência, consoante redigida pelo preceito legal, deveria ser comprovada por todos os licitantes.
Dessa forma, existiria uma solução, mas que, reconheço, não é a melhor, mas é a única, por ora, que atenderia minimamente o objetivo da Administração. Antes de revelar a ideia já antecipo que a sugestão é a “menos pior”, uma vez que “pior mesmo” é a permissão legal para exigir a garantia de participação nas licitações, mormente nos pregões, na forma eletrônica.
Sugere-se exigir previamente dos licitantes a apresentação de uma “declaração de cumprimento à exigência da garantia de participação”, similar a outras declarações exigidas pela lei antes do envio da proposta eletrônica (a exemplo das declarações do art. 63, I e IV, da Nova Lei). Assim, decorrida a fase de lances e como condição para pré-habilitação, “todos” os licitantes seriam convocados para comprovar o recolhimento da garantia e, em
sequência, seguir à próxima fase da licitação. A não comprovação do recolhimento resultaria, inevitavelmente, na caracterização da “falsidade da declaração” acarretando as devidas consequências legais para o licitante infrator.
Há também um trade-off 1 (*) preocupante relacionado à exigência da garantia de proposta, pois essa medida pode representar uma barreira adicional à participação nas licitações. Primeiramente, todos os interessados, sejam vencedores ou não, terão que arcar com esse custo. Em segundo lugar, o custo da emissão da garantia será inevitavelmente repassado ao valor da proposta, elevando os preços de produtos e serviços contratados pela Administração. Terceiro, a obtenção de uma “carta de fiança” ou um “seguro garantia” não é um processo simples e pode ser incompatível com o prazo de publicidade do aviso de edital, demandando mais tempo do que o disponível. Quarto, ao impor exigências prévias de natureza econômica, corre-se o risco de desestimular a participação, reduzindo o número de competidores e, consequentemente, a competitividade da disputa.
Diante disso, surge a questão: será que vale a pena instituir mais uma exigência de participação para assegurar o pagamento de uma possível e incerta multa, mesmo sabendo que tal exigência pode resultar no aumento dos preços e na diminuição da competitividade?
É bem possível que o legislador, ao instituir o preceito contido no art. 58, caput, da Lei 14.133/21, não tenha considerado plenamente as consequências da exigência da "garantia de participação" nas licitações eletrônicas. A implementação dessa exigência pode não apenas contribuir para a formação de conluios, além de elevar os custos das propostas, mas também restringir a competitividade, ao afastar potenciais participantes que poderiam contribuir com ofertas mais vantajosas. Assim, é fundamental reavaliar a eficácia e a necessidade dessa medida, buscando um equilíbrio que proteja os interesses públicos sem comprometer a ampla concorrência e a eficiência das contratações públicas.
(*) 1 Trade off: é a escolha de uma opção em detrimento de outra.
Publicado em 21 de Junho de 2024
Dr. Ariosto Mila Peixoto, advogado especializado em licitações e contratos administrativos, pelo escritório AMP Advogados
*Alguns esclarecimentos foram prestados durante a vigência de determinada legislação e podem tornar-se defasados, em virtude de nova legislação que venha a modificar a anterior, utilizada como fundamento da consulta