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Direito da concorrência e o desenho das licitações

O questionamento sobre como garantir que contratações públicas não sejam fraudadas por agentes públicos e privados ganhou espaço destacado no debate público recente, em particular após a Operação Lava-Jato. As abordagens são diversas e vão da revisão do modelo de licitações e contratações estabelecido pela Lei nº 8.666/1993 ao aprimoramento dos mecanismos e das instituições de controle destinados a assegurar a higidez das contratações e, mais recentemente, passam por uma preocupação reforçada com a clássica questão sobre efetiva competitividade nas licitações. Mas o que significa garantir efetiva competitividade nas licitações?

Para responder a esse questionamento, é interessante observar um duplo movimento aparentemente desconexo, cuja improvável união pode abrir possibilidades de avanços ao país.

De um lado, da perspectiva do que se pode chamar de controle repressivo, nota-se que o combate aos cartéis em licitações entrou definitivamente na agenda da autoridade de defesa da concorrência do país, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Os diversos acordos de leniência celebrados com empresas que admitem ter se coordenado para fraudar a competitividade de licitações públicas são ilustração desse fenômeno repressivo de garantia da efetiva competitividade nas licitações. Ou seja, de uma perspectiva posterior aos fatos, o direito da concorrência mobilizado pelo Cade tem um papel importante para reprimir condutas que visem à redução da competitividade nos certames públicos. Embora a previsão legal exista pelo menos desde 1990, com a Lei dos Crimes Econômicos (Lei nº 8.137/1990), e a Lei 8.666/1993 já permitisse que o Cade atuasse no tema, o órgão só veio a condenar um cartel em licitação em 2001.

De outro lado, da perspectiva do que se pode chamar de prevenção, instituições tradicionais de fiscalização das contratações públicas, como tribunais de contas, Ministérios Públicos e o Poder Judiciário, bem como atores da sociedade civil, têm mostrado mais preocupação com a efetiva competitividade nas concorrências públicas, antes de mesmo de serem iniciadas. Somente no município de São Paulo, dois exemplos recentes de contribuição preventiva para aprimoramento da competitividade de licitações são o questionamento do edital da licitação das linhas de ônibus por entidades da sociedade civil[1], e a paralisação da licitação do contrato de varrição, por uma intervenção do Tribunal de Contas do Município (TCM) motivada por possíveis entraves à concorrência presentes no edital. Não se trata de defender que a preocupação com a efetiva competitividade nas licitações públicas seja um tema novo no direito administrativo; na realidade, trata-se de questionamento recorrente há muito tempo. A sugestão é a de que a competitividade tem se tornado mais importante enquanto critério de avaliação da legalidade das licitações.

Se é verdade que a competitividade está se tornando pedra angular de análises sobre licitações, tanto da perspectiva preventiva como da repressiva, levantam-se aqui duas provocações. Uma primeira, de ordem teórica, questiona o ferramental analítico utilizado pelas instituições que têm assumido o controle preventivo para analisar a competitividade das licitações e quais contribuições o direito da concorrência pode oferecer.

Independentemente do juízo que se faça dos parâmetros que têm sido utilizados nas análises mais tradicionais de licitações, especialmente advindas do direito administrativo, o conhecimento acumulado pelo direito concorrencial teria muito a contribuir, trazendo um extenso leque de possibilidades ao desenho das licitações públicas. Para ficar somente em alguns exemplos, ferramentas conceituais e metodológicas utilizadas pelo Cade na análise de mercados, tais como definição de mercado relevante, poder de mercado, condições de oferta, barreiras à entrada, poder de compra, mercados verticais, entre outros, podem contribuir significativamente no desenho de licitações e sua repercussão sobre o funcionamento de determinados mercados. Além disso, a expertise teórica da autarquia para identificar indícios de cartel pode facilitar o trabalho de gestores que lidam com licitações, ensejando maior atenção a possíveis fraudes à competitividade em certames públicos.

O reconhecimento da possível relevância do direito concorrencial para aprimoramento do controle preventivo e do desenho de licitações públicas nos leva à segunda provocação: não teria o Cade um papel institucional a desempenhar nesse controle preventivo, ainda que de uma perspectiva de diálogo institucional com órgãos de controle tradicionais e de parcerias estratégicas para capacitação e compartilhamento de informações?

Embora essa indagação seja mais espinhosa, parece-nos haver espaço para explorar possibilidades. Em primeiro lugar, o fundamento jurídico da atuação do Cade em licitações não lhe restringe ao papel repressivo, sendo que a autoridade também poderia atuar em alguma medida no combate aos cartéis e infrações da ordem econômica da perspectiva preventiva. Em segundo lugar, porque a interação institucional entre tribunais de contas – e as demais instituições já mencionadas – e o Cade, tendo por objeto o desenho das licitações, pode ser benéfica a ambos: enriquecendo o ferramental teórico dos primeiros para analisar a questão da competitividade, e permitindo à autoridade antitruste sofisticar sua visão sobre os processos licitatórios, aprimorando o trabalho que já vem desempenhando na fiscalização repressiva de condutas. A possibilidade de que outros órgãos da Administração Pública se beneficiem de informações coletadas pelo projeto Cérebro, por exemplo, que identifica indícios de fraudes nas licitações por meio de algoritmos, é um exemplo de parceria institucional possível que reconheça um potencial papel preventivo na atuação do Cade.

Ainda que improvável, o casamento entre o direito concorrencial e o desenho das licitações poderia trazer frutos interessantes a um dos gargalos do desenvolvimento brasileiro.

(Fonte: Jota)

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