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A importância do PL 2.872/2023 para o Sistema Único de Saúde

O PL 2.872/2023 propõe a alteração do artigo 79 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para incluir a hipótese de contratação de serviços complementares de saúde por meio do credenciamento de prestadores de serviços ao SUS (Sistema Único de Saúde).

Sabe-se que a Constituição de 1988 estabeleceu no artigo 199, §1º que: “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio” (BRASIL, 1988).

Contudo, a contratação desses prestadores não aconteceu com a naturalidade esperado e o Ministério da Saúde teve que criar uma política de contratualização por meio de chamamentos públicos.

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, por sua vez, tornou expressa a possibilidade de realização do chamamento público, através do instituto denominado de credenciamento. Entretanto, não deu nenhum destaque para as contratações da saúde complementar que são os principais serviços contratados por meio do referido instrumento.

Sem dúvida, o credenciamento, atualmente, está consagrado na jurisprudência, entretanto os estudos sobre ele ainda são incipientes, pois a doutrina não é substanciosa no tratamento da matéria e a Lei regente, em que pese tenha tratado do credenciamento expressamente, ainda é muito recente.

Por tudo isso, os agentes públicos, especialmente os gestores da saúde pública, ainda encontram dificuldades na realização do credenciamento, principalmente pelas dúvidas no momento de escolher o credenciamento como modalidade de seleção de prestadores em detrimento da realização do certame licitatório.

A questão que se estabelece é a seguinte: em que medida o PL 2.872 pode contribuir positivamente para potencializar a realização de chamamentos públicos com vistas ao credenciamento de instituições privadas para participar de forma complementar do SUS?

Para responder a esta questão, abordaremos as principais características do funcionamento do SUS, o tratamento que a Lei 14.133/2021 deu ao credenciamento e, por fim, declinaremos as razões pelas quais consideramos a alteração legislativa proposta importante.

Funcionamento do sistema
A Lei nº 8.080/1990, que regulamenta a participação complementar dos prestadores de saúde, estabelecendo que “quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada” (BRASIL, 1990).

A Lei do SUS estabelece que a formalização desta participação ocorrerá “mediante contrato ou convênio, observadas as normas de Direito Público e os critérios e valores para a remuneração de serviços bem como os parâmetros de cobertura assistencial serão estabelecidos pela direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS)” (BRASIL, 1990).

As secretarias de saúde, por sua vez, considerando as dificuldades para garantir o acesso universal e igualitário aos usuários do SUS, formalizaram as contratações de prestadores sem realizar nenhum procedimento licitatório ou de chamamento público.

Apenas criaram uma Folha de Programação Orçamentária (FPO) para autorizar os prestadores de saúde a executar os serviços dispostos na Pactuação Programada Integrada (PPI) de acordo com a capacidade de cada um, conforme disposto no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e Tabela SUS. Depois disso, bastava apresentar as faturas.

Sem relação contratual típica, não havia garantia de que o prestador executaria os serviços nem que as políticas do SUS seriam observadas a contento. Esse formato era precário e o Ministério da Saúde criou a política de Contratualização do SUS para incentivar os prestadores a formalizarem contratos, com assunção de compromissos qualitativos e quantitativos para dar vazão às políticas de saúde em atendimento à população.

A convocação dos eventuais interessados se dava por meio de chamamento público geral e se enquadrava na vaga hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no artigo 25 da Lei 8.666/93 (REQUI, 2015), cujo rol de hipóteses é exemplificativo.

Se trata de hipótese de inexigibilidade porque, em regra, o Estado tem a intenção de contratar o maior número de prestadores possível, pois a demanda é muito maior do que a capacidade que o universo de prestadores tem a oferecer, individualmente (FERNANDES, 2003. p. 41).

Em síntese, para que o Sistema Único de Saúde funcione bem é necessário ter uma grande rede de prestadores que consiga entregar os tratamentos de saúde necessários a cada usuário, com integralidade e equidade, sendo o credenciamento uma ferramenta adequada para isso.

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos
Recentemente, a Lei nº 14.133/2021, de 1º de abril de 2021, tratou expressamente, no título que versa sobre a contratação direta, do Credenciamento, que antes somente tinha previsão legal em leis estaduais e agora foi listado como um instrumento auxiliar às contratações públicas e não precisa mais ser considerado uma mera interpretação extensiva compatível com o rol exemplificativo das inexigibilidades.

Mas se o rol de inexigibilidades da Lei 14.133/2021 é exemplificativo, porque se faz necessário incluir a hipótese de contratação de serviços complementares de saúde por meio do credenciamento de prestadores de serviços ao SUS na referida lei?

Atente-se que o credenciamento, por ser considerado uma exceção à regra de licitar, sempre foi relegado ao segundo plano pelos doutrinadores, pelos agentes públicos e até mesmo pelos Tribunais de Contas, que costumeiramente sinalizavam espanto diante de órgãos auditados que tivessem percentuais de inexigibilidades muito superiores aos de licitações, inclusive se este órgão fosse uma secretaria estadual ou municipal de saúde.

Deve-se ressaltar que no universo da saúde pública o credenciamento não é a exceção, mas sim a regra, pois geralmente o objetivo é contratar o maior número de prestadores possível a preço pré-estabelecido e as modalidades licitatórias não atendem a estes requisitos.

Portanto, é preciso romper com esse estigma de que o credenciamento deve ser evitado, não se trada de exceção, mas sim da regra, nas contratações de serviços de saúde.

Alguns estados, como Bahia, Paraná, Pernambuco e Goiás, por exemplo, já possuíam legislações estaduais de licitações nas quais se regulamentava o artigo 25 da Lei 8.666/93, mesmo antes da Lei nº 14.133/2021.

A Lei 9.433/2005 merece destaque por ser uma legislação vanguardista em relação ao tema, pois 16 anos antes da atual Lei Federal de licitações reconhecer o credenciamento, a lei baiana já tratava da matéria de modo bastante seguro ao estabelecer no artigo 61 que:

É inexigível a licitação, por inviabilidade de competição, quando, em razão da natureza do serviço a ser prestado e da impossibilidade prática de se estabelecer o confronto entre os interessados, no mesmo nível de igualdade, certas necessidades da Administração possam ser melhor atendidas mediante a contratação do maior número possível de prestadores de serviço, hipótese em que a Administração procederá ao credenciamento de todos os interessados que atendam às condições estabelecidas em regulamento (BAHIA, 2005).

Havia ainda a obrigatoriedade da confecção de um regulamento específico para cada credenciamento, em rigorosa atenção “aos princípios constitucionais da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade e aos princípios do procedimento licitatório”. A Lei 9.433/2005 previa também a que a lisura, transparência e economicidade faziam parte da garantia de tratamento isonômico entre os interessados.

Sobre a dinâmica do processo administrativo de credenciamento, a lei apresentava três requisitos importantes, relacionados à ampla publicidade, à definição do preço do serviço e à normatização do procedimento em si.

Vê-se, portanto, que a lei baiana garantiu a máxima divulgação, inclusive por meio eletrônico, para ampliar o universo de interessados. Mas além da quantidade dos credenciados, também se garantiu a qualidade dos serviços através da fixação de critérios mínimos para efetivação do credenciamento, o qual deveria, em regra, permanecer aberto para o interessado poder se credenciar a qualquer tempo.

Outro ponto elementar que deveria constar do regulamento do credenciamento era a fixação criteriosa da tabela de preços dos serviços, bem como critérios de reajustamento, vedado o pagamento de quaisquer sobretaxas.

A na rotatividade de convocação dos credenciados deveria atender a critérios objetivos, sempre desconsiderando a vontade da Administração na determinação da quantidade de cotas de serviços entregues aos credenciados.

De fato, a referida legislação é bem completa em relação ao tema e até mais avançada que a Lei 14.133/2021, inclusive quando determinou que o regulamento do credenciamento também deveria tratar das hipóteses de descredenciamento e da possibilidade de rescisão pelo credenciado, bem como do regramento para que os próprios usuários pudessem denunciar irregularidades nos serviços ou no pagamento.

Tudo isso mostra que ainda é possível avançar em relação à redação da Lei nº 14.133/2021 no que diz respeito ao credenciamento e o PL 2872/2023 é o início desse avanço. O texto sugerido para compor o artigo 79 da Lei é muito próximo do artigo 61 da Lei nº 9.433/2005.

Pertinência da alteração legislativa proposta
Conforme sinalizado, a produção doutrinária sobre Credenciamento Público ainda é escassa, tanto porque a Lei de Licitações e Contratos Administrativos que sistematizou expressamente o credenciamento é recente, quanto porque existe uma tendência dos gestores públicos e principalmente dos órgãos de controle em rejeitar a contratação direta, a qual é sempre relegada às hipóteses de exceção, esquecendo-se de que no ambiente não concorrencial o credenciamento — a qual é uma forma de contratação direta — pode ser a melhor opção e, em muitos casos, a única que atende ao interesse público.

Se mostra, portanto, necessária a ampliação do debate sobre os instrumentos que podem dar mais efetividade à política de contratualização do Sistema Único de Saúde e, consequentemente, à realização do anseio constitucional de um sistema público de saúde universal e integral que atenda a todos, oferecendo todos os serviços necessários.

A disposição expressa da hipótese de contratação de serviços complementares de saúde por meio do credenciamento de prestadores de serviços ao SUS pode incentivar os gestores de saúde, a realizar o credenciamento. Assim também, os órgãos de controle interno e externo terão maiores elementos para validar o credenciamento de tais prestadores.

O TCU (Tribunal de Contas da União), por meio do Acórdão 352/2016-Plenário de 24/02/2016, da relatoria do ministro Benjamin Zymler, já decidiu que: “O credenciamento pode ser utilizado para a contratação de profissionais de saúde, tanto para atuarem em unidades públicas de saúde quanto em seus próprios consultórios e clínicas, quando se verifica a inviabilidade de competição para preenchimento das vagas, bem como quando a demanda pelos serviços é superior à oferta e é possível a contratação de todos os interessados, devendo a distribuição dos serviços entre os interessados se dar de forma objetiva e impessoal”. (TCU, ACÓRDÃO 352/2016 — PLENÁRIO, 2016)

Este enunciado foi classificado pela equipe da diretoria de jurisprudência do TCU como paradigmático e no Acórdão ficou consignada a determinação para que o Ministério da Saúde oriente todos os entes federativos a observarem o instituto do credenciamento na contratação de empresas privadas para prestação de serviços de saúde.

O TCU, ainda sob a égide da Lei 8.666/1993, estabeleceu que o credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade inserida na cabeça do atrigo 25 do referido diploma legal, “porquanto a inviabilidade de competição configura-se pelo fato de a Administração dispor-se a contratar todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições por ela estabelecidas, não havendo, portanto, relação de exclusão” (TCU, ACÓRDÃO 351/2010 — PLENÁRIO, 2010)

A regularidade contratação exige a indispensável garantia de “igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a Administração, pelo preço por ela definido” (TCU, ACÓRDÃO 351/2010 — PLENÁRIO, 2010) na contratação direta.

A jurisprudência do TCU não deixa dúvidas de que o credenciamento é legítimo para contratações múltiplas do mesmo tipo de objeto, quando se pretende contratar o maior número de prestadores possível. A jurisprudência também é sólida ao apontar que por vezes o credenciamento ou é a única hipótese viável, ou é mais vantajosa, bem como que os critérios de seleção devem ser objetivos, impessoais e a regra de remuneração deve ser previamente estipulada no edital.

Entre os serviços que podem ser contratados por meio do credenciamento, a jurisprudência do TCU já consagrou que as hipóteses não são taxativas, pois tanto o artigo 25 da Lei 8.666/1993, quanto o artigo 79 da Lei 14.133/2021 deixa um rol aberto para as diversas situações em que não houver competição tendo em vista que o objeto contratado não pode ser prestado apenas por um ou por poucos prestadores.

O STJ (Superior Tribunal de Justiça), por sua vez, tem se mostrado deferente aos entendimentos esposados pela Corte de Contas e consagra o credenciamento como uma “modalidade de licitação inexigível em que há inviabilidade de competição e admite a possibilidade de contratação de todos os interessados em oferecer o mesmo tipo de serviço à Administração Pública”. (REsp nº 1.747.636/PR, relator ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 3/12/2019, DJe de 9/12/2019).

O STF (Supremo Tribunal Federal), outrossim, coaduna com o referido entendimento e afirma que: “a atribuição de título jurídico de legitimação da entidade através da qualificação configura hipótese de credenciamento, no qual não incide a licitação pela própria natureza jurídica do ato, que não é contrato, e pela inexistência de qualquer competição, já que todos os interessados podem alcançar o mesmo objetivo, de modo includente, e não excludente”. (ADI 1923, Órgão julgador: Tribunal Pleno, relator(a): ministro AYRES BRITTO, redator(a) do acórdão: ministro LUIZ FUX, Julgamento: 16/04/2015, Publicação: 17/12/2015).

Por tudo isso, resta claro que o PL 2.872/2023 traz para o texto legal o entendimento que está consolidado nos tribunais sobre a possibilidade de contratação de serviços complementares de saúde por meio do credenciamento de prestadores de serviços ao SUS.

A lei deve ser o ser clara e o PL 2.872/2023 configura um instrumento para este fim em relação às contratações sanitárias. Além disso, a proposta legislativa apresentada pelo deputado federal Jorge Solla (PT-BA) teve origem em sugestões apresentadas na dissertação de mestrado do subscritor deste artigo, enrobustecendo a qualificação técnica do projeto, que foi idealizado no ambiente da pesquisa científica.

Acresce-se a isso o componente de legitimidade e participação democrática da proposta, pois o referido parlamentar amplifica as vozes daqueles que militam por um sistema de saúde cada vez mais eficiente.

Conclusão
Por fim, concluímos que a alteração do artigo 79 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para incluir a hipótese de contratação de serviços complementares de saúde por meio do credenciamento de prestadores de serviços ao SUS é uma importante iniciativa para potencializar a realização de chamamentos públicos, formalização de prestadores, ampliação da rede assistencial e para desmistificação dos estereótipos do credenciamento. Além disso, a alteração legislativa consagra entendimento forte na jurisprudência, contribuindo para a redução da judicialização e facilitando o trabalho dos órgãos de controle interno e externo.

De toda sorte, a matéria está submetida ao Congresso, que tem a competência para apreciar o projeto e, se for o caso, alterar a lei de licitações e contratos do país, espera-se que esta apreciação seja marcada pela racionalidade e atendimento ao interesse público no que diz respeito à otimização dos princípios da universalidade, integralidade e equidade.

_________________

Referências
ALMEIDA, Alisson Santos de. (2023). O credenciamento público constante da Lei nº 14.133/2021 e a regulação discricionária da saúde complementar. Dissertação de Mestrado em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 112p.

BAHIA. Lei nº 9.433 de 01 de março de 2005. Casa Civil, Salvador, 01 março 2005. Disponível em: <http://www.legislabahia.ba.gov.br/documentos/lei-no-9433-de-01-de-marco-de-2005>. Acesso em: 20 dezembro 2022.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.

BRASIL. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 28 jul. 2021.

FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação. 5. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003.

REQUI, Erica Miranda dos Santos. Afinal, o que é credenciamento? Zênite Blog, 2015. Disponível em: <https://www.zenite.blog.br/afinal-o-que-e-credenciamento/>. Acesso em: 28 jul. 2021.

TCU. ACÓRDÃO 351/2010 – PLENÁRIO. Tribunal de Contas da União. Brasília, p. 1. 2010. (029.112/2009-9).

TCU. ACÓRDÃO 352/2016 – PLENÁRIO. Tribunal de Contas da União. Brasília, p. 1. 2016. (017.783/2014-3).

(Fonte: COnjur)

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