Autenticação de documentos pelo servidor

Em uma prefeitura, o procurador negou-se a autenticar um documento de habilitação, alegando que o art. 32 “caput” da Lei 8666/93, na parte que trata da permissão da autenticação de documentos por servidores, foi revogada pelo art. 7º, inc. V da Lei Federal nº 8.935/94 – Lei de Registros Públicos – por conferir apenas aos tabeliães notariais a competência exclusiva para autenticar cópias. Diante disso, os servidores não têm fé pública? E o próprio art. 32 da 8666/93, perdeu mesmo a eficácia?

Preliminarmente, cabe transcrever o dispositivo legal citado que parece ter causado o conflito na conduta dos membros de Comissão de Licitação, Pregoeiros e membros de Equipes de Apoio:

“Art. 7º Aos tabeliães de notas compete com exclusividade:
(…)
V – autenticar cópias”.

Os serviços notarias e de registros têm a finalidade de garantir a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos  (art. 1º da Lei Federal nº 8.935/94). No que tange à verificação e atestação da autenticidade de documentos, A atividade notarial tem por objetivo garantir que a cópia de um documento seja revestida da formalidade legal que comprova sua autenticidade em relação ao documento original. Portanto, a cópia autenticada produz os mesmos efeitos jurídicos que o documento original que deu origem àquela cópia; também, tem efeito erga omnes, ou seja, onde quer que seja apresentada e contra todos, a cópia autenticada por cartório produzirá seus efeitos jurídicos.

Contudo, a Lei Federal nº 8.666/93 prescreve uma “ação” por parte do servidor da administração que parece conflitar com o dispositivo da Lei 8.935/94. Vejamos.

Reza o artigo 32, caput, da Lei Federal nº 8.666/93, que:

“Art. 32 Os documentos necessários à habilitação poderão ser apresentados em original, por qualquer processo de cópia autenticada por cartório competente ou por servidor da administração ou publicação em órgão da imprensa oficial.” (grifo nosso)

Tendo em vista a matéria regulada pela Lei 8.666/93 – Licitações – a autenticação do documento por servidor da Administração só teria efeito para esta finalidade, isto é, qualquer documento autenticado por servidor só produz seus efeitos no âmbito da Administração à qual pertença o servidor (que autenticou o documento) e exclusivamente para o processo licitatório específico em que foi requisitada a autenticação.

A finalidade é facilitar o acesso dos licitantes ao (já extremamente) burocratizado processo licitatório. A apresentação da cópia simples acompanhada do original tem por objetivo simplificar e diminuir custos de participação dos interessados em concorrer ao contrato com o governo.

Entendo que não se trata de um conflito de atribuições. Embora seja atribuição exclusiva dos tabeliães a autenticação de documentos, de fato, o que se pretendeu na Lei 8.666/93 foi uma “autenticação” atípica: que não produz efeitos erga omnes, não tem formalidade especial, de amplitude reduzida (exclusivamente para fins de procedimento licitatório) e eficácia muito estreita (produz efeitos somente perante o órgão público em que o servidor encontra-se lotado).

E como é feito o procedimento de autenticação por servidor da Administração? O interessado em disputar o certame (pessoa física ou jurídica) apresentará a cópia simples e, simultaneamente ou quando requisitado, exibirá o documento original para a verificação da autenticidade da cópia. Em procedimentos licitatórios, a cópia simples será inserida no envelope de documentos ou proposta e quando aberto, a Comissão de Licitação ou Pregoeiro requisitará ao licitante que exiba o documento original para confrontá-lo com a cópia. Constatada a autenticidade, o servidor declarará na cópia simples, de forma escrita, a confirmação e o caráter autêntico do documento, além da data, nome, cargo (ou função) e assinatura. Esta cópia “autenticada” terá eficácia restrita ao órgão público ao qual faça parte o servidor, portanto, não tem efeito erga omnes da autenticação feita por tabelião. Por oportuno, cumpre alertar que a Administração não pode reter o documento original; depois de comparada a cópia com o original, o servidor deverá devolvê-lo ao interessado.

A vantagem da adoção do procedimento é clara: simplifica a participação nas licitações e desonera o concorrente do custo de autenticação em cartório. Com isso, implementa-se o universo de competidores e o caráter competitivo e favorece a Administração Pública obter a proposta mais vantajosa.

Ainda quanto à inexistência do conflito entre as normas federais, cabe apontar o princípio da especialização que determina que se aplique, prioritariamente, a regra especial. No caso, os procedimentos licitatórios são regidos pela Lei Federal nº 8.666/93 e seus preceitos devem ser obedecidos com preferência a qualquer outro, ressalvando-se, por óbvio, qualquer disposição constitucional. Assim sendo, o disposto no art. 32 da Lei 8.666/93 não destitui ou sequer interfere na atividade própria e típica dos tabeliães. A Lei de Licitações apenas criou um procedimento interno e restrito que não pode ser comparado à “autenticação de cópia de documento” a que se refere a Lei 8.935/94.

Partindo desse pressuposto, o preceito legal da Lei 8.666/93 (art. 32) é peremptório ao definir que os documentos de habilitação poderão ser apresentados por qualquer processo de cópia autenticada, inclusive por servidor da Administração. Ora, os membros da Comissão de Licitação são servidores da Administração Pública, razão pela qual deveriam providenciar a imediata autenticação da cópia simples à vista do documento original.

A recusa em autenticar o documento configura flagrante ato ilegal, sujeito às sanções administrativas a quem deu causa. A conduta irregular estará suscetível ao controle jurisdicional.

Mesmo que o Edital tenha sido omisso, não prevendo a aceitação das cópias autenticadas por servidor, a Lei Federal deverá prevalecer em relação ao ato convocatório. Ao constatar-se conflito entre a norma legal e o edital, prevalecerá o primeiro que, hierarquicamente, é superior ao instrumento convocatório.

O consagrado autor, Desembargador JESSÉ TORRES PEREIRA JUNIOR, em sua obra “Comentário à Lei das Licitações e Contratações com a Administração Pública”, 5a ed., Renovar, lecionou a respeito do tema:

“Será aceita autenticação por cartório ou servidor autorizado; o critério segue a orientação dos artigos 364 e 365 do Código de Processo Civil, não fossem as normas do direito processual judiciário, direito público que é, influtentes sobre o processo administrativo.
Note-se que a lei menciona servidor, o que exclui pessoal estranho aos quadros do órgão ou da entidade, como um prestador eventual ou autônomo de serviço, por exemplo. Segue-se que documento apresentado por cópia poderá ser autenticado por qualquer dos membros da Comissão de Licitação, mediante conferência com o original.” (grifo nosso)

O Estatuto Federal das Licitações é absolutamente cristalino ao definir a regra na apresentação dos documentos de habilitação. Da mesma forma o Código de Processo Civil estabelece a diretriz na apresentação de documentos no âmbito judicial:

“Artigo 385 – A cópia de documento particular tem o mesmo valor probante que o original, cabendo ao escrivão, intimadas as partes, proceder à conferência e certificar a conformidade entre a cópia e o original.”

Na instrução dos autos, é prática legal e usual a conferência da cópia em relação ao original. Nessa esteira, é inadmissível que os membros da Comissão Permanente de Licitações, Pregoeiros e Equipes de Apoio, servidores que são da Administração Pública, sejam impedidos ou se recusem a autenticar tal documento.

Sobre o tema, o TCU – Tribunal de Contas da União – proferiu o Acórdão TCU nº 801/2004 – Plenário – AUGUSTO SHERMAN CAVALCANTI (Ministro Relator):

“(…) No que concerne à alegação de que a exigência de que todos os documentos relacionados no edital sejam apresentados em original ou cópia autenticada por cartório competente ou publicação em órgão da imprensa oficial fere as disposições contidas nos arts. 384 e 385 do CPC, visto que não considera a possibilidade de servidor da comissão de licitação ou nomeado por ela certificar a autenticidade de fotocópia apresentada em conjunto com o original, tal interpretação não encontra abrigo. Ora, para que servidor possa atestar a autenticidade de cópias de documentos devem ser disponibilizados necessariamente seus originais, justamente uma das formas de apresentação de documentos prevista no questionado item 4.5 do edital da referida licitação”. (grifamos)

O Superior Tribunal de Justiça – STJ, 3a Turma, Resp 94.626-RS, Relator Ministro Eduardo Ribeiro (DJU 16.11.98, p. 86) promanou o seguinte acórdão:

“A impugnação a documento apresentado por cópia há de fazer-se com indicação do vício que apresente, se o impugnante tem acesso ao original. Não se há de acolher a simples afirmação genérica e imprecisa de que não é autêntico.” (grifo nosso)

Nesse passo, à vista do pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, a alegação da falta de autenticação do documento somente deverá ser argüida quando viciado o seu conteúdo. Do contrário, a simples afirmação de que a cópia do documento não é autêntica, mesmo em comparação com o original, não deverá prosperar.

O BLC – Boletim de Licitações e Contratos, Editora NDJ, Junho/98, preconizou:

“Assim, a Administração não deve aceitar documentos apresentados em cópia simples. Contudo, nada obstaria que os interessados apresentassem os documentos em cópia simples, desde que estivessem acompanhados do respectivo original. Nesse caso, deveria a Administração conferir a reprodução, verificando se continha o mesmo teor do documento original.”

Quanto ao dispositivo constitucional contido no art. 19, II:

“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
II – recusar fé aos documentos públicos;”.

De fato, a Constituição Federal refere-se à expressão “negar fé aos documentos públicos”, contudo, não faz expressa menção à “cópia de documentos públicos”. Ainda assim, o dispositivo constitucional aplica-se ao caso, uma vez que todos os atos produzidos no procedimento licitatório – e não há como negar que a autenticação da cópia simples à vista do original faz parte do conjunto de atos e ações presentes na licitação – convirjam para uma “decisão final”, “adjudicação” e “contrato”, portanto, a autenticação por servidor é mero procedimento “meio” para atingir a finalidade; é um ato jurídico em sentido estrito que compõe o conjunto de atos administrativos intermediários destinados a resultar o ato administrativo principal (processo liciatório). Assim sendo, todos os documentos produzidos durante a licitação revestem-se de fé pública. Ademais, foram produzidos por servidores públicos (vide: princípio da presunção de veracidade dos atos públicos), notadamente no que se refere à legitimidade da cópia simples em confronto com o documento original, atestada pela autoridade pública que preside o julgamento da licitação – Comissão de Licitação ou Pregoeiro.

Sobre “presunção de veracidade”, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIERO (in “Direito Administrativo”, Atlas, 3ª ed., pg. 151) lecionou:

“(…) a presunção de legitimidade constitui um princípio do ato administrativo que encontra o seu fundamento na presunção da validade que acompanha todos os atos estatais, princípio em que se baseia, por sua vez, o dever do administrado de cumprir o ato administrativo.”

Diante dos fatos e do direito apresentados, entendo que a legislação vigente e especial recomendam ao servidor que proceda à autenticação da cópia simples quando em comparação com o original. Em hipótese alguma o edital poderá sobrepujar a Lei que o regulamenta; nesse sentido, o edital não pode definir regra contrária ao que determina a norma legal. Por fim, a regra contida no art. 7º, V, da Lei Federal nº 8.935/94, não revogou nem destitui de eficácia o art. 32, caput, da Lei Federal nº 8.666/93.

(Colaborou Ariosto Mila Peixoto, advogado especializado em licitações públicas e contratos administrativos).

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