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Por que a singularidade é o Wolverine da nova Lei de Licitações?

Wolverine é o personagem mais famoso da filmografia dos X-Men, uma série que narra a saga de indivíduos mutantes que lutam para preservar ou destruir a convivência com os humanos na terra. Interpretado pelo ator australiano Hugh Jackman, Logan, como também é chamado, é um mutante pouco disciplinado, com sentimentos aflorados, que expõe violentas garras de adamantium quando se sente acuado, em estado de perigo.

Entretanto, a peculiaridade mais interessante do personagem é a sua capacidade regenerativa, que termina por conduzi-lo à imortalidade. É justamente nesse ponto que Wolverine e o conceito de singularidade da Lei 8.666/93 se entrecruzam, e se fundem como se fossem uma só realidade.

Na última coluna que publiquei nesse espaço da Conjur, apresentei o roteiro da temporada final da série The Walking Dead na Administração Pública, tratando da Nova Lei de Licitações e da opção do legislador em não reproduzir, no artigo 74, III da Lei 14.133/21 (assim também não na Lei 13.303/16), o conceito de serviços de caráter singular (ou singularidade), que tanta discussão produziu — e continua a produzir — por conta do artigo 25, II da Lei 8.666/93, que trata da contratação direta de profissionais notório-especializados.

O teor do artigo pretendeu expor que a singularidade é uma característica da contratação administrativa que se revela no objeto do contrato — serviço — (daí a expressão “serviço de caráter singular”), mais do que no motivo (na respectiva razão de ser) da contratação do profissional notório especializado pela Administração Pública.

Pretendeu-se também demonstrar que essa circunstância exigiria divisar o uso procedimental da hipótese de contratação direta sem licitação, em dois momentos diferentes. O primeiro, na identificação da necessidade pública a ser satisfeita pela ação administrativa; o segundo, na opção pela contratação direta de um expert (entre os tantos existentes no mercado), desde que avaliadas precedentemente as condições próprias da Administração, para suprir a necessidade administrativa identificada de per se, bem como a predominância do aspecto subjetivo da contratação (interessa mais “o quem” do que “o que”), a patentear que o bom êxito da solução reclamaria um maior grau de certeza, segurança e qualidade no resultado da execução do serviço (justificando o afastamento da licitação e a utilização da inexigibilidade).

O raciocínio pretendeu, por fim, expor que o fato de o legislador da Lei 14.133/21 não ter reproduzido a expressão “serviço de caráter singular” no artigo 74, III, teve objetivos claros, e que não teve o condão de transformar a hipótese de contratação direta numa grande festa discricionária, em ordem a possibilitar que qualquer contratação pudesse se realizar só porque o contratado era detentor de predicados diferenciados de especialidade.

Bem ao contrário, o artigo propôs a ideia de que a notória especialização do executor é que notabiliza o resultado da execução do contrato, e que, no momento de se definir pelo caminho da contratação administrativa, o juízo a ser formulado pela Administração é de proporcionalidade (adequação, necessidade e proporção entre a necessidade da demanda administrativa e a contratação) e não um juízo de tudo ou nada.

Após a publicação do artigo, tive acesso a manifestações de estudiosos de escol, os quais criticaram a minha posição e sustentaram que nada mudou a respeito da disciplina da Lei 8.666/93 para a da Lei 14.133/21. Isto porque, para fins de contratação direta, o que interessa para esses autores é inexoravelmente a inviabilidade de competição. Ponto final! Concluíram os críticos no sentido de que, mesmo diante da falta de referência pelo legislador à singularidade na Lei 14.133/21 (assim como na Lei 13.303/16), ela continua viva e deve ser respeitada para os casos regulados pelo artigo 74, III da Lei 14.133/21.

Nesse ponto é que Wolverine e a singularidade se abraçam. É impressionante a capacidade de regeneração de ambos. Diferentemente dos walking dead, que morrem para depois ressuscitar, Wolverine e a singularidade nem chegam a morrer, antes disso regeneram-se…

É fato que as hipóteses de inexigibilidade derivam da inviabilidade de competição. Ninguém afirmou o contrário! Mas a inviabilidade de competição pode se configurar, não apenas diante da ausência de possíveis competidores (como no caso do fornecedor ou prestador único do serviço), mas também diante da ausência de critérios objetivos para a seleção de propostas (situação que contradita o julgamento objetivo típico da licitação).

É exatamente neste último ponto, que subjaz o caso da contratação dos notórios especializados para a execução de serviços predominantemente intelectuais em prol da Administração Pública. Na espécie, prevalece o aspecto subjetivo da contratação, porquanto interessa mais, à satisfação da necessidade administrativa, “quem” executará o contrato, do que “o que” se executará pelo contrato. O resultado da execução do serviço pelo notório é uma espécie destacada de serviço, marcada pela característica de pessoalidade, notadamente porque o executor é uma pessoa havida como referência na sua área de atuação. O resultado do contrato é um serviço mais respeitado, fundamentalmente pela a marca, pela assinatura do seu executor.

Note-se, ainda, que quando o legislador da Lei 14.133/21 alterou a redação do parágrafo primeiro do artigo 25, da Lei 8.666/93, e passou a — no artigo 6º, XIX e no §3º do artigo 74 —, prescrever que a “notória especialização é a qualidade de profissional ou de empresa cujo conceito, no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permite inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Houve uma sútil mudança entre as leis de licitações, passando a nova a exigir apenas que o trabalho a ser executado pelo notório especializado seja “essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato”.

O legislador substituiu a expressão “o mais adequado” (Lei 8.666/93) pelo vocábulo “adequado” (Lei 14.133/21), vertendo-se ao trabalho executado, a fim de demonstrar que pode haver uma pluralidade de soluções possíveis à disposição da Administração, mas que a liberdade de eleição dada ao administrador estará confirmada desde que a opção tenha sido necessária (essencial) e adequada (proporcional).

Um exemplo ajudará a elucidar o que se está a dizer. Só que construído a partir da disciplina do artigo 74, II da Lei 14.133/21 (similar ao artigo 25, III da Lei 8.666/93). Suponhamos que um pequeno município pretende contratar um artista de renome nacional para pintar um espaço de 2 x 2 metros quadrados que fica à frente da nova entrada da prefeitura municipal. O artista contratado é reconhecido com uma referência pela crítica especializada, e suas telas são caríssimas no cenário nacional, algo em torno de R$ 500 mil o metro linear. Existem pintores de parede na prefeitura que poderiam cobrir de tinta o espaço. Existe também, à disposição da Administração, a possibilidade de licitar localmente desenhos de artistas locais para elaborar a tela.

Há algum parâmetro para dizer da impossibilidade de contratação do artista renomado, que não fosse a desproporcionalidade entre a sua contratação vis-à-vis o suprimento da necessidade da Administração em questão? Ou também aqui a singularidade do objeto haveria de ser um atributo, não escrito, porém pressuposto, à previsão legal da contratação?

Num segundo exemplo, suponhamos que o mesmo artista, nascido naquela cidade, resolva cobrar pelos serviços um preço bastante aquém do que normalmente cobraria para executá-lo, algo simbólico, expectando que o mural com a tela viesse a se transformar num local de visitação turística, por exemplo. Neste caso, haveria a impossibilidade de contratação porque o serviço não seria singular?

Como se vê, na hipótese da contratação de artistas consagrados (artigo 74, II, Lei 14.133/21), à semelhança da contratação dos notórios especializados (artigo 74, III), o primeiro juízo a ser realizado pela Administração é um juízo de necessidade da contratação para o atendimento do fim a que se destina. E depois disso, se o resultado expectado com a execução do objeto, apontar para a necessidade de um serviço mais evoluído, em termos de certeza, segurança e qualidade, o mecanismo eleito pelo legislador para atender a finalidade é a escolha discricionária do artista de renome, apto, portanto, a executar o objeto do contrato e legitimar a escolha da contratação.

O que se percebe é que a singularidade (não reproduzida na Lei 14.133/21) foi transformada, por muitos, em dogma jurídico. De nada adianta que o legislador deliberadamente a tenha excluído da Lei 14.133/21 (e da Lei 13.303/16), porque sua força normativa seria ontologicamente pressuposta ao tipo específico de contratação de notórios especializados, seja qual for o seu objeto (v.g, treinamentos).

Uma tal postura não deixa de ser um modo vintage, para não dizer retrô, de se interpretar a nova Lei 14.133/21. Fazer com que expressões, mesmo quando excluídas pelo legislador, se regenerem pela vontade da doutrina, equivale a um movimento antitético ao brocardo “a lei não possui palavras inúteis”.

Encaminhando-me para o final, para descrever essa propensão ao “repeteco hermenêutico”, em alusão à sobrevida da singularidade, tomo de empréstimo um dos textos da coluna Senso Incomum, do professor e jurista Lenio Streck, publicado aqui na ConJur – “A Sereníssima República”, de Machado de Assis, a ver:

“O grande Machado de Assis escreveu o conto ‘A Sereníssima República’, na qual o cônego Vargas relata sua descoberta: ‘aranhas falantes, que se organizaram politicamente’.
O cônego lhes ofereceu um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos. O inusitado ocorreu quando da eleição de um magistrado (para uma corte superior). Havia dois candidatos.
disputa era ‘Nebraska contra Caneca’. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato.
Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra (A). Mas as cinco testemunhas resolveram o problema. Afinal, Nebrask, faltando um A, só poderia ser … Nebraska.
Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Trouxe um grande filólogo, formado por uma famosa Universidade que apresentou a sua tese: “Em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra ‘a’ do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional.
E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra ‘k’, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, ‘k’ e ‘ca’ é a mesma coisa.
Logo, quem lê o final lerá ‘ca’; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é ‘ne’. Tem-se, assim, ‘cané’.
Resta a sílaba do meio ‘bras’, cuja redução a esta outra sílaba ‘ca’, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso.
É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas… Aí está a prova: a primeira afirmação mais as silabas ‘ca’ às duas ‘Cane’ dando o nome Caneca.”[1]

Hugh Jackman e Machado são indiscutivelmente singulares. E o serviço que qualquer um dos dois viesse a hipoteticamente executar em prol da Administração Pública legitimar-se-ia com espeque apenas na contratação direta, por inexigibilidade, do artista ou do notório, afinal quem se habilitaria a assistir X-men sem Wolverine? Provavelmente a mesma pessoa que leria Machado, procurando encontrar uma simples estória em quadrinhos…

(Fonte: Conjur)

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