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Ponderações sobre o regime especial de contratações públicas na Covid-19

A dinâmica e a persistência da pandemia da Covid-19 têm colocado em xeque alguns procedimentos tradicionais do Direito Administrativo para lidar com a urgência necessária para enfrentamento de uma série de questões, entre elas as contratações públicas emergenciais.

A Lei Federal nº 13.979, de 6/2/2020, com as alterações posteriores das Leis nº 14.035, de 11/8/2020, e nº 14.065, de 30/9/2020, dispôs sobre medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus e instituiu um sistema de normas transitórias para o enfretamento da pandemia, trazendo algumas regras específicas para os processos de contratações públicas que formam verdadeiro “regime especial”, derrogatório temporariamente de vários pontos da Lei Federal nº 8.666/1993.

A despeito do regramento ordinário de contratações “nos casos de emergência ou de calamidade pública”, com base na dispensa prevista no artigo 24, inciso IV, da Lei 8.666/1993, o legislador ponderou que, além da curta vigência dos contratos firmados em decorrência de dispensa (180 dias, vedada a prorrogação), outras formalidades do “regime comum” deveriam ser temporariamente minimizadas em prol de valor mais relevante: preservação da saúde pública durante a pandemia da Covid-19.

Assim, a Lei nº 13.979/2020 partiu das seguintes presunções normativas que permitem a contratação por dispensa de licitação: 1) ocorrência de situação de emergência; 2) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; 3) existência de risco à segurança de pessoas, de obras, de prestação de serviços, de equipamento e de outros bens, públicos ou particulares; e 4) limitação de contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência (artigo 4º-B).

Estabelecido o pano de fundo, basicamente o regime especial e transitório de contratações públicas se concentra no artigo 4º ao artigo 4º-K da Lei nº 13.979/2020. Foram várias as flexibilizações permitidas pela lei, podendo ser ressaltadas, em resumo: 1) dispensa da publicação dos atos procedimentais no Diário Oficial, a contrario sensu (artigo 4º, §2º); 2) admissão de contratação, em situações excepcionais, de empresa impedida ou suspensa de contratar com o poder público, desde que ela seja a única fornecedora do bem ou prestadora do serviço que se pretenda contratar (artigo 4º, §3º) e seja prestada garantia; 3) afastamento da exigência de elaboração de estudo preliminares, quando se tratar de bens e serviços comuns (artigo 4º-C); 4) admissão de apresentação de termo de referência ou de projeto básico simplificados (artigo 4º-E); 5) dispensa da estimativa de preços (artigo 4º-E, §2º), não havendo impedimento de contratação por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços (artigo 4º, §3º); 6) afastamento da exigência de documentação relativa à regularidade fiscal ou, ainda, do cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade trabalhista e o cumprimento de normas a respeito do trabalho infantil (artigo 7º, inciso XXXIII, da CR/88) (artigo 4º-F); 7) permissão de um pregão simplificado no qual os prazos do procedimento serão reduzidos pela metade (artigo 4º-G, caput e §2º) e os recursos terão efeito apenas devolutivo; 8) afastamento da regra de obrigatoriedade de audiência pública para as licitações acima de R$ 330 milhões (artigo 4º-G, §3º); 9) permissão de alteração contratual envolvendo acréscimos ou supressões ao objeto contratado de até 50% do valor inicial atualizado do contrato (artigo 4º-I).

Obviamente, essa relativização de exigências até então consideradas intocáveis no regime jurídico das licitações deve vir acompanhada de motivação razoável, em consonância com as peculiaridades do caso concreto, pois, além de ser imprescindível para a validade do ato administrativo, serve como mecanismo de transparência ao possibilitar o controle social das opções adotadas.

Com relação ao período para o uso da dispensa de licitação prevista na Lei nº 13.979/2020, é importante mencionar que logo no artigo 4º, §1, há o alerta que a lei “é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”.

O relato normativo acima está em sincronia com a redação original do artigo 8º, que dispunha que a sua vigência coincidia com o “estado de emergência internacional pelo coronavírus responsável pelo surto de 2019”.

Pouco mais de um mês de vigência, a lei sofreu alteração pela Medida Provisória nº 926, de 20/3/2020, que manteve a redação anterior do artigo 8º, apenas ressalvando os prazos de vigência estabelecidos nos contratos firmados com base na lei (que podem durar até 6 meses e ser prorrogados por períodos sucessivos — artigo 4º-H).

Contudo, na conversão da MP nº 926/2020 na Lei nº 14.035/2020, o artigo 8º sofreu nova alteração, dessa vez para vincular a eficácia da lei à vigência do Decreto Legislativo nº 6 [1], de 20/3/2020, que reconheceu o estado de calamidade pública até o dia 31/12/2020.

O mesmo raciocínio foi aplicado à Lei nº 14.065/2020, na parte em que ampliou os limites de dispensa de licitação (R$100 mil para obras e serviços de engenharia e R$ 50 mil para outros serviços ou compras) e autorizou o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos, cuja vigência também ficou adstrita, desde de sua redação original, ao estado de calamidade pública previsto no referido decreto legislativo.

Portanto, desde 1º/1/2021 as Leis nº 13.979 e 14.035 cessaram sua vigência e as contratações públicas emergenciais enfrentaram um vácuo legislativo, restando aos gestores públicos se valerem do artigo 24, I e II (valor) ou IV (urgência), da Lei nº 8.666/1993 para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia da Covid-19.

Ao contrário do que foi divulgado por parte da imprensa, a decisão monocrática [2] proferida no dia 30/12/2020 pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI nº 6.625, proposta pelo partido Rede Sustentabilidade, não prorrogou o estado de calamidade pública previsto no Decreto Legislativo nº 6/2020, mas tão somente conferiu interpretação conforme à Constituição ao artigo 8º da Lei nº 13.979/2020, para o fim de excluir de seu âmbito de aplicação as medidas extraordinárias previstas nos artigos 3°, 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E, 3°-F, 3°-G, 3°-H e 3°-J, inclusive dos respectivos parágrafos, incisos e alíneas.

O regime especial de compras públicas foi parcialmente restabelecido com a publicação da Lei nº 14.124, em 10/3/2021, mas apenas no que concerne à aquisição de vacinas e insumos e à contratação de bens e serviços destinados à vacinação contra a Covid-19. Essa lei guarda muitas similitudes com a Lei 13.979/2020, pois prevê diversas flexibilizações e permissões antes inimagináveis na seara das contratações públicas. Contudo, a nova legislação também traz, inexplicavelmente, norma limitadora de vigência: segundo o artigo 20, as normas transitórias da lei aplicam-se aos atos e contratos firmados até 31/7/2021, independentemente do seu prazo de execução ou de suas prorrogações. Como o calendário de vacinação no Brasil está bastante atrasado, com pouco mais de 20% da população com a primeira dose da vacina e 10% com a segunda dose até o final do mês de maio [3], o que se espera é que a vigência da Lei nº 14.124/2020 seja estendida até que a situação de instabilidade se normalize.

Apenas no último dia 3, com a edição da Medida Provisória nº 1.047, o regime especial inicialmente previsto na Lei 13.979/2020 foi reestabelecido ao dispor, em linhas gerais, dos seguintes temas: 1) dispensa de licitação; 2) licitação na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, com prazos reduzidos; 3) previsão em contrato ou o instrumento congênere cláusula que estabelece o pagamento antecipado; 4) planejamento da contratação; 5) suprimento de fundos; e 6) forma de publicação dos atos praticados [4].

O propósito de restabelecimento das práticas voltadas às compras governamentais permitidas no ano de 2020 foi declarada na exposição de motivos da MP:

“2) A proposição visa a reestabelecer medidas excepcionais e urgentes voltadas às contratações públicas para atendimento célere e racionalizado, mediante a congregação de iniciativas — primando pela economia processual — no enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da Covid-19 (Covid-19), tendo em vista que a legislação vigente de contratações públicas traz um custo processual e um interregno inerente às aquisições e contratações, que dificulta o provimento tempestivo de insumos para abastecer hospitais e atender a população do Brasil de forma urgente”.

Dessa vez, a vigência do ato normativo foi vinculada ao período de enfrentamento da situação de emergência em saúde pública de importância nacional decorrente da pandemia da Covid-19, independentemente do seu prazo de execução ou de suas prorrogações, cuja duração será disposta em ato do ministro de Estado da Saúde (artigo 17), o que parece ser mais condizente com a realidade da pandemia vivida no Brasil.

Portanto, nos quatro primeiros meses do ano, a Administração Pública ficou “sem norteador regulatório diferenciado para a realização de ações/programas voltados para o enfretamento da pandemia da Covid-19”, para usar as palavras da exposição de motivos da MP nº 1.047, restando aos gestores, como já mencionado acima, lançar mão do burocrático regramento da Lei 8.666/1993, ainda que por meio de dispensa de licitação.

 

Cristina Andrade Melo é procuradora do Ministério Público de Contas de Minas Gerais e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da UFMG.

Thiago Pinheiro Lima é procurador-geral do Ministério Público de Contas de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2021, 6h34

(Fonte: COnjur)

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