Antes de tratar do tema “declaração falsa no Pregão”, torna-se necessário examinar o preceito contido nos artigos 297, 298 e 299, do Código Penal:
Falsificação de documento público
“Art. 297. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa.”
Falsificação de documento particular
“Art. 298. Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.”
Falsidade ideológica
“Art. 299. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre o fato juridicamente relevante:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.” (grifo nosso)
Como premissa, há que se estabelecer uma distinção entre a falsidade material e ideológica do documento. Na falsidade material, ocorre a falsificação da forma do documento, que é alterada; cria-se um novo documento. Quanto à falsidade ideológica (art. 298, CP), a forma do documento é verdadeira, mas seu conteúdo é falso, ou seja, a idéia ou declaração que o documento contém não corresponde à verdade.
“Se a falsidade de documento público é material, incide no art. 297; mas se é ideológica, enquadra-se no art. 299. Se o falso em documento particular é material, insere-se no art. 298; e, se for ideológico, no art. 299 do CP.” (in Código Penal Comentado, CELSO DELMANTO e outros, 5ª ed., Renovar) (grifo nosso)
A Lei 10.520/02, que criou a modalidade de licitação denominada Pregão, estabeleceu em dois dos seus dispositivos, uma redação que traz certa polêmica, in verbis:
“Art. 4º A fase externa do pregão será iniciada com a convocação dos interessados e observará as seguintes regras:
(…)
VII – aberta a sessão, os interessados ou seus representantes, apresentarão declaração dando ciência de que cumprem plenamente os requisitos de habilitação e entregarão os envelopes contendo a indicação do objeto e do preço oferecidos, procedendo-se à sua imediata abertura e à verificação da conformidade das propostas com os requisitos estabelecidos no instrumento convocatório;”.
“Art. 7º Quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não celebrar o contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame …”. (grifamos)
A interpretação dos dois dispositivos legais, se levada a efeito de forma superficial, ensejaria certa controvérsia e poderia trazer a seguinte situação: um determinado licitante participa de um Pregão e apresenta a “declaração de cumprimento dos requisitos de habilitação” no início do certame, mas, após a abertura do invólucro que contém os documentos de habilitação, verifica-se o descumprimento de uma das exigências editalícias e o licitante é considerado inabilitado. Ora, se o licitante declarou, no início do certame, que se encontrava habilitado, mas, na seqüência no processo, foi inabilitado, poderia tal declaração ser interpretada como documento revestido de falso ideológico, em virtude de ter produzido uma declaração falsa sobre sua condição de habilitação.
No entanto, fazendo uma análise mais acurada dos artigos 4º e 7º, não me parece correto apontar como autor de “falsidade ideológica” o citado licitante inabilitado, somente porque teria apresentado, no início do certame, declaração de que cumpria os requisitos de habilitação.
A expressão “documentação falsa”, de que trata o art. 7º, da Lei 10.520/02, pode abranger:
a) o “documento público falso” (art. 297, do CP) cuja conduta verifica-se quando o agente falsifica, no todo ou em parte, documento público, alterando-se sua forma ou conteúdo;
b) o “documento particular falso” (art. 298, do CP) cuja conduta é a falsificação, no todo ou em parte, de documento particular; ou
c) a “falsidade ideológica” (art. 299, do CP) que se refere ao conteúdo do documento.
No entanto, em qualquer destas condutas deverá verificar-se a presença do dolo.
É conditio sine qua non (condição indispensável) que o crime em referência, para ser consumado, possua, como tipo subjetivo, o dolo, ou seja, deverá restar comprovada a vontade livre e consciente de falsificar ou alterar o documento, com consciência da possibilidade lesiva ao interesse de terceiro ou a intenção de beneficiar-se na concorrência com a fraude do documento.
SE NÃO HOUVER INTENÇÃO (DOLO) DE FALSIFICAR O DOCUMENTO E BENEFICIAR-SE COM A FALSIFICAÇÃO, NÃO HÁ QUE SE FALAR EM FALSIDADE DA “DECLARAÇÃO” PREVISTA NO ART. 4º, VII, DA LEI 10.520/02.
Portanto, a “declaração dando ciência de que cumpre plenamente os requisitos de habilitação” não poderá ser considerada “documentação falsa exigida para o certame”, exceto se restar comprovada a intenção de produzir falsa declaração para prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade.
Inexiste a forma culposa, ou seja, se não houve a intenção de falsificar o documento e beneficiar-se com a fraude, não há crime. Ainda, se o documento falso originou-se da imperícia, imprudência ou negligência, também não haverá crime.
Assim sendo, a conduta do licitante que de boa-fé apresenta a “declaração de pleno cumprimento dos requisitos de habilitação”, mas, em seguida, por um erro ou descuido, é inabilitado, não caracteriza falsidade ideológica, pois não houve intenção de produzir-se falso conteúdo do documento nem vontade de fraudar a concorrência.
Para caracterizar a infração (“documento falso exigido para o certame” – art. 7º) a Administração deverá comprovar que o licitante agiu com dolo, ou seja, agiu com vontade livre e consciente de produzir falsa declaração, alterando-se a verdade sobre o fato juridicamente relevante.
Com efeito, não havendo intenção de falsificar a “declaração” (de que trata o art. 4º, VII), não haverá caracterização do preceito contido no art. 7º (Lei 10.520) e tampouco haverá o crime previsto no art. 90, da Lei 8.666/93:
“Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação:
Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.”
PAULO JOSÉ DA COSTA JR. versou brilhantemente a respeito do tema e ensinou que o crime previsto no art. 90 deverá apresentar, como tipo subjetivo, o dolo genérico e o específico. “O dolo genérico acha-se representado pela vontade consciente e livre de frustrar, ou de fraudar a concorrência do procedimento licitatório. O dolo específico acha-se configurado pelo intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação. Sem essa tendência interna e transcendente, de obtenção de uma vantagem econômica com a adjudicação, não se perfaz o crime.” (in Direito Penal nas Licitações, Ed. Saraiva)
Por fim, é bom lembrar: para um documento (in casu, declaração) ser caracterizado como “falso”, exigirá o devido processo legal com todos os instrumentos de contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, CF). Ademais, a falsidade documental – de documento público, particular ou ideológica – exige ação penal pública incondicionada, ou seja, é exercida pelo Ministério Público, nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal. O processo criminal para apuração da falsidade de documento público (art. 297, CP) ou particular (art. 298, CP) necessitará do exame de corpo de delito.
(Colaborou Ariosto Mila Peixoto, advogado especializado em licitações públicas e contratos administrativos).
Publicado em 23 de novembro de 2010
*Alguns esclarecimentos foram prestados durante a vigência de determinada legislação e podem tornar-se defasados, em virtude de nova legislação que venha a modificar a anterior, utilizada como fundamento da consulta