Artigos

Carta de Solidariedade: Nova Proteção ou Armadilha Jurídica na Execução Contratual?

Inobstante todo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial construído em um passado próximo, que teceu duras críticas e acabou por demonizar a exigência da “carta de solidariedade”(1) nos editais de licitação fundamentados na já revogada Lei 8.666/93, fato é que tal exigência foi prevista – agora expressamente – na nova Lei de Licitações, mediante a inclusão do preceito contido no art. 41, IV, da Lei 14.133/21:

Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente: (…)
IV – solicitar, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor. (g.n.)

Longe de esgotar o tema – mesmo porque, me parece, este debate sobre a “carta de solidariedade” está somente no começo – é inegável que a redação do inciso IV do art. 41 traz importante registro do legislador sobre a aversão da Administração à exposição ao risco de o contratado vir a se revelar incapaz de executar a prestação devida. Além disso, tal dispositivo alinha-se ao viés constitucional (do art. 37, XXI, da CF) que permite ao poder público estabelecer critérios que assegurem a execução do contrato. Em última análise, o legislador buscou atender ao interesse público.

A princípio, o termo “solidariedade” remete ao conceito presente no Código Civil (art. 264) segundo o qual, há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda. A existência de uma “solidariedade típica” colocaria o fabricante e o distribuidor (ou revendedor) no mesmo nível hierárquico da relação obrigacional contratual perante a Administração Pública, o que poderia conduzir ao equívoco de exigir, simultaneamente, o cumprimento da obrigação a ambos – fabricante e distribuidor/revendedor. Tal situação se assemelharia à responsabilidade solidária de um “consórcio” (cf. art. 15, inciso V, da Lei 14.133/21), o que, neste contexto, não parece adequada.

No caso do dispositivo legal descrito no inciso IV, do art. 41, a solidariedade mencionada se parece muito mais à responsabilidade subsidiária, na qual o fabricante só deveria ser acionado pela Administração após terem sido esgotadas todas as tentativas de adimplemento contratual pelo contratado que, no caso, seria o distribuidor ou revendedor. Assim, a Administração não poderia, automaticamente, exigir o fornecimento do fabricante; seria necessário, primeiramente, exaurir todos os meios e recursos legais para que o contratado cumprisse suas obrigações.

Outro ponto que merece atenção reside, justamente, na expressão: “que assegure a execução do contrato”. A “carta de solidariedade” possui, portanto, uma finalidade clara: garantir a execução integral do contrato.

Assim, as expressões: “carta de solidariedade” e “assegure a execução do contrato” indicam que o legislador pretendeu criar uma ferramenta jurídica para que a Administração, direta ou indiretamente, exija o cumprimento eficaz e integral das obrigações contratuais.

Vejamos outros pontos de análise:

1 – Excepcionalidade da exigência: a solicitação da “carta de solidariedade” não é uma regra geral para todos os contratos que envolvam o fornecimento de bens, mas uma exigência discricionária que pode ser exercida pela Administração Pública de forma excepcional. Nesse contexto, a exigência desse documento deve ocorrer apenas em situações específicas e devidamente justificadas no ETP (Estudo Técnico Preliminar) ou em outro documento que integre a fase preparatória da licitação, nas hipóteses em que for considerado necessário reforçar a garantia da execução do contrato.

2 – Necessidade de Justificativa Técnica: a lei determina que a Administração Pública  justifique a necessidade de solicitar uma carta de solidariedade. Isso implica que a motivação deverá ser baseada em fatores que aumentem a segurança do contrato, especialmente para prevenir possíveis riscos de inadimplência por parte do revendedor ou distribuidor. A carta de solidariedade, a depender de sua redação ou conteúdo, pode ser a resposta encontrada pelo poder público para os problemas recorrentes de interrupção no fornecimento, decorrentes de inadimplência e atrasos, fornecendo uma camada extra de segurança ao contrato. Assim, ela funciona como medida de proteção ao interesse coletivo, pois não apenas reforça o compromisso do fabricante em monitorar e gerenciar o adimplemento contratual do seu revendedor ou distribuidor, como também o coloca dentro da órbita dos efeitos jurídicos caso o principal contratado não cumpra suas obrigações.

3 – Compromisso com a execução: a expressão “assegure a execução do contrato” implica que o fabricante não apenas endossa o produto ofertado na proposta comercial, mas também se compromete com a continuidade do fornecimento, caso o distribuidor falhe na execução. Este documento representará um compromisso do fabricante de que, em caso de falha ou incapacidade do revendedor ou distribuidor em cumprir as obrigações contratuais, ele (fabricante) assumirá a responsabilidade ou deverá, por qualquer meio, assegurar o fornecimento dos produtos contratados. Contudo, a responsabilidade é limitada ao escopo de fornecimento dos bens e não se refere à totalidade das obrigações contratuais, como, eventualmente, a prestação de serviços adicionais, se houver.

4 – A redação da carta de solidariedade será determinante para atribuir-se a extensão completa (ou parcial) da responsabilidade do fabricante: uma “carta de solidariedade” poderia ser vista como uma extensão das garantias oferecidas pelo fabricante que, ao aprovar a redação do documento, compromete-se não apenas com a qualidade dos produtos e a idoneidade do distribuidor, mas também com a continuidade da execução do contrato, assumindo, em tese, a responsabilidade em casos de descumprimento por parte do contratado. Esta interpretação atenderia aos anseios do administrador público, a garantir que, em caso de inadimplência do Contratado, a Administração pudesse obrigar diretamente o fabricante a garantir a execução. Para isso, seria necessário que a “carta de solidariedade” detalhasse claramente a responsabilidade solidária a que será submetido o fabricante, pois, segundo o Código Civil (art. 265) a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes. Não se pode perder de vista, entretanto,  que o excesso desse detalhamento poderá caracterizar exigência restritiva à licitação.

5 – Limites à responsabilidade solidária: na doutrina já existem argumentos sólidos no sentido de que a responsabilidade solidária do fabricante deve ser limitada, pois a principal função do fabricante é garantir a qualidade dos bens produzidos, não a execução integral do contrato, que é obrigação do contratado. Assim, uma “carta de solidariedade” não significa que o fabricante deva assumir a obrigação de fornecimento em caso de falha do contratado principal, mas apenas um compromisso de suporte técnico ou continuidade de fornecimento de produtos, limitando-se ao âmbito de sua atividade e responsabilidade. Entretanto, se a “carta de solidariedade” não cria ao fabricante a obrigação de assegurar a execução do contrato, ainda que para isso seja necessário assumir o fornecimento, qual teria sido a real intenção do legislador em inserir o preceito contido no art. 41, IV, na Lei 14.133/21?

Em termos práticos, ao utilizar a “carta de solidariedade” como exigência da fase de julgamento da proposta, a Administração Pública busca mitigar os riscos de interrupção na execução contratual, mas deve avaliar cuidadosamente a “redação” da exigência e os efeitos decorrentes no âmbito da responsabilidade contratual. Recomenda-se que a responsabilidade do fabricante seja claramente especificada para evitar interpretações dúbias que possam gerar controvérsias ou dúvidas na execução contratual, dando origem a litígios administrativos e judiciais.

(1) Também chamada, em alguns casos, de “carta do fabricante” ou “carta de credenciamento”.

 

Publicado em 06 de novembro de 2024

Dr. Ariosto Mila Peixoto, advogado especializado em Licitações e Contratos no Escritório Ariosto Mila Peixoto Advogados Associados.

*Alguns esclarecimentos foram prestados durante a vigência de determinada legislação e podem tornar-se defasados, em virtude de nova legislação que venha a modificar a anterior, utilizada como fundamento da consulta

Related posts
Artigos

Compliance, Ética e a Nova Lei de Licitações – Como o Decreto nº 12.304, de 9 de dezembro de 2024, pode fortalecer a integridade nas relações entre o Setor Público e Privado.

O avanço das normas de controle, transparência e governança no setor público brasileiro ganhou…
Read more
ArtigosNotícias

Contratos de eficiência: origem, desafios e perspectivas

Nos termos da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC)…
Read more
Artigos

A Porteira Continua Fechada: STF mantém Excepcionalidade e Rigor na Contratação Direta (por inexigibilidade de licitação) de Advogados pela Administração Pública

O STF, por maioria, apreciando o tema 309 da repercussão geral, deu provimento ao RE nº…
Read more

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *